sexta-feira, setembro 17, 2010

#PP_SILENCIO_01
Estejam calados, um minuto só, sim?
Deixem-me ficar aqui, encolhida sobre mim. Não, não digam nada, por favor, deixem-me, só. Não me obriguem a explicar o que aconteceu na casa onde deixei o coração porque o que aconteceu não pode ser explicado de modo a que vocês entendam. Conseguem, por uma vez, aceitar sem compreender? Sem precisarem de devassar lugares que ninguém tem o direito sequer de espreitar? Fui eu e foi ele e, sobretudo, não me digam o que sentir. Vou dizer isto devagarinho para garantir que entendem: nenhum-de-vocês-tem-o-direito-de-me-dizer-o-que-sentir.
Silêncio, por favor.
Deixem-me ficar só, neste canto escuro, neste território onde as palavras não contam porque aqueles 3.096 dias simplesmente não têm tradução na linguagem dos que, como vocês, folheiam os calendários sem pisar, sequer em sonhos, a fronteira do bem e do mal. Eu andei por lá e deixem-me que vos diga: é mentira que o ódio liberta. O ódio não liberta, destrói e aprisiona e eu não admito ser refém senão de mim própria.
Portanto, não se transformem vocês nos carrascos que odeiam com regozijo quando os vêem dissecados nas páginas dos jornais e nas imagens dos telejornais, suficientemente longe para não ameaçaram a domesticidade mansa dos vossos dias, suficientemente perto para que lhes espreitem os interstícios da alma entre garfadas de arroz. Pois bem, eu dormi com ele e repito-vos que o ódio não liberta, destrói; e se decidirem entender que o perdão é uma forma de amor, pois bem talvez o tenha amado um bocadinho.
Agora deixem-me, sim? Deixo-vos este livro e fico-me com os meus cactos. Não, não precisam de muita água e, sim, conseguem defender-se com os seus espinhos. Gostam do sol, mas toleram o frio. Basicamente, aceitam o tratamento que lhes dão, mas mantêm-se fiéis a si próprios.
Chamo-me Natascha Kampush, tenho 22 anos, vivi numa cave durante dez, numa reclusão que me transformou nesta espécie de mulher. Fugi. Aprendi a andar de saltos altos. Aceitei a ideia de que o carrasco mais não é do que vítima dos seus próprios demónios e fiquem sabendo que as piores prisões não são as de tijolo e cimento. Ofereci-vos o meu inferno pessoal, agora deixem-me ficar aqui, encolhida sobre os meus cactos.
Silêncio, sim?
Natália Faria Jornalista do Jornal Público

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